No me reclame niño si lo abandono
le peleo a la vida por usted tesoro,
no me reclame niño si me demoro.
¡Ay, qué camino tan desparejo,
la angustia cerca y mi niño lejos!
Ay, qué camino tan desparejo,
la angustia cerca y mi niño lejos”
Mercedes Sosa
UM BONECO CHAMADO ZEZINHO
Leila Jalul
A casa de Maria do Rosário, a Mudinha, despertava curiosidade. Vizinhos, passantes e o povo em geral diziam coisas desencontradas sobre ela. Alguns garantiam que a mulher tinha muito dinheiro escondido sob o colchão e também num velho cofre guardado no porão. Conclusões que serviam para aumentar o mistério.
Sua casa era mais que uma casa: era um templo. O seu templo. Nela ninguém entrava ou saía. O quintal, por ela própria cuidado com esmero, era mais que um quintal: era um paraíso. Um viveiro a céu aberto. Restaurante de sabiás, curiós e bem-te-vis famintos e barulhentos. Ainda que salafrários, dois galos de campina utilizavam o pé de manga-pêssego uma vez por ano, na época da reprodução. Tudo parecia feito por mãos de fada e dedos de Deus.
Da rua, quem passasse, avistava pouco do interior. Na sala, numa tosca prateleira forrada com uma toalhinha de papel de seda, com desenhos geométricos lindamente recortados, repousavam seis canecas de louça. Sempre colocava novas toalhinhas, uma mais linda que a outra. Coisa de artista do interior, de mãos hábeis e criação plena. As canecas, invariavelmente, eram as mesmas. Entrava ano, saía ano e lá estavam. Todas tinham desenhos cor de rosa, exceto a menor. Era azul e estava sem a asa.
Classificada, a grosso modo, poder-se-ia dizer que Mudinha era uma doida calma, esquisita e zelosa. Somente Dona Judite e o marido Osmar sabiam que não. Mudinha, quando comprou a casa, falava. Pouco, mas falava. Era cordial, ainda assim. Acenava para os vizinhos. Era sorridente. Seus biscoitos de polvilho doce, por ela nomeados asas de anjo, eram únicos na face da terra. Desmanchavam na boca. Tinham formatos geométricos cortados com carretilha dourada. Vieram deles os recursos para sua sobrevivência. Por toda uma vida, vieram deles. Não fazia vendas diretas. Estavam disponíveis na padaria do Seu Reynaldo Moreno, homem justo e bom padeiro. E foi o filho do Seu Reynaldo quem desvendou os segredos da vizinha. Nada por curiosidade. Tudo sob o ponto de vista médico. Mudinha, com seu comportamento arredio, tanto quanto seus biscoitos, causavam vontades de desvendar: pessoa e receita.
Quando criança, Orlando Moreno até entrou naquele quintal-paraíso da Mudinha. Poucas vezes, mas entrou. Nele, além do encanto dos pássaros, saboreava mangas, cajaranas, cerejas e amoras. Afastou-se quando rapazola. Depois, finalista de Medicina, pensou em Mudinha para sua monografia. Desistiu depois da difícil abordagem. Por dias seguidos bateu à porta da vizinha e recebeu calado como resposta. Certa feita, pela insistência, teve a janela gentilmente lacrada na sua cara. Não sem um sorriso, mas com certo e silencioso pedido de volte depois.
Orlando desistiu. Quando da residência, voltou com outros métodos de convencimento. Já não pensava apenas num trabalho baseado em metodologias e patologias. Insistiu como pretenso amigo, vizinho e médico. Mudinha ficou dias sem abrir a casa. Estava doente. Febre alta e gripe forte pendendo para uma pneumonia. Foi levado por Dona Judite que, informada pelo marido, ficou sabendo que a vizinha deixou de entregar a partida de asas de anjo.
A porta estava aberta. Mudinha, na cadeira de balanço, parecia esperar. Parecia, não. Esperava. Levada para o quarto, foi medicada e observada. Observados, também, foram a organização e limpeza do quarto. Tudo era branco. A colcha de linho, esticadinha e engomada, cobria uma pequena cama onde se perfilavam seis bonecas, embrulhadas em pequenos panos, como nos berçários. Bonecas antigas, de rosto de celulóide, cabelos fartos e olhos que se abriam e fechavam. Na outra cama, na maior, forrada por uma rica colcha de crochê, deitava Mudinha e um velho boneco sem cabeça. O cheiro de bebê exalava do boneco.
Recuperada, ficou mais receptiva. Vez por outra aceitava a companhia de Orlando, seu doutor, vizinho e conhecido desde quando ainda era pequeno. Aos poucos, estreitaram laços. Orlando, mesmo sabendo ficar sem resposta falada, não deixava de indagar e dizer que, um dia, queria saber mais das bonecas e do bebê sem cabeça que ela tanto acariciava. Que não deixava longe de seu travesseiro.
Não foi tarefa fácil. Por vezes entendeu que a vontade dela era falar, mas não pediu pressa. E foi assim, de espera em espera, que a espera acabou. Mudinha, quando flagrada em atitude estranha, passando a mão na cabeça do boneco sem cabeça, primeiro chorou. Depois, com custo, disse um nome: Zezinho. Zezinho, esse era o nome de seu descabeçado. A conversa parou aí. Era confortante demais saber que ela falava. O mais, saberia depois.
Um ano se passou. As atividades médicas de Orlando fizeram rarear as visitas. Porém, num inverno rigoroso, esteve com ela novamente. Nova gripe forte atacara Mudinha e já dava aviso de outra pneumonia. Desta vez a visita foi solicitada. Após o atendimento de praxe, percebeu não ser necessária uma internação. Um atendimento domiciliar mais efetivo resolveria bem. Deitou a paciente em seu leito e, querendo facilitar os procedimentos, quis retirar o boneco sem cabeça, até para deixá-la mais à vontade. Num ímpeto, ela agarrou o boneco.
- Não, ele não! Por favor, ele não!
- Pronto, Dona Maria do Rosário. Seu menino está de volta, no mesmo lugar.
Na semana seguinte, após ter garantida a recuperação de sua paciente, Orlando quis saber o nome das bonecas e pediu que falasse sobre o Zezinho. Ficou espantado com a não recusa. Apontando para cada uma das meninas, ela revelou:
- São todas minhas irmãs. Esta primeira é a Maria Goreth, esta é a Maria das Dores, aquela lourinha é a Maria da Glória, a morena é Maria Inês, a pequenininha é Maria Alba e esta última é a Maria das Vitórias. Elas viajaram para longe. Um homem foi na casa de mamãe e levou umas pessoas. Cada uma das minhas irmãs foi ser filha de outra gente. Todos prometeram que cuidariam delas e mamãe ficou feliz com o dinheiro que deixaram.
- E você, Maria do Rosário? Não levaram você?
- Não. Mamãe precisava que eu tomasse conta do Zezinho. Ela era muito doente. Ele, também. Com dois anos de idade cabia numa caixa de papelão. Parecia morto. Não andava, não falava e seus olhos, dormindo ou acordado, não fechavam nunca. O pescoço dele não aguentava a cabeça e esta ficava sempre caída para trás. Era muito fraquinho. Muito!
- Ele foi doado para outra família?
- Depois falamos sobre Zezinho. Hoje, não.
Orlando não saiu logo. Quis estar com a paciente-amiga naquele momento. Conversaram sobre outros assuntos., principalmente sobre seus hábitos alimentares. Precisava saber se estava bem nutrida. Depois da batelada de medicamentos...
Ficou satisfeito com o que ouviu. Sua amiga se alimentava de muitas frutas, chás e mingaus de aveia e fubá. Carne, vez em quando, só de frangos da sua própria criação.
O caso do Zezinho, enfim, foi revelado. Partiu dela a iniciativa. Mesmo mantendo a calma, fez um relato dolorido.
- Um dia, mamãe estava internada, quando chegou um homem da justiça, Junto dele, um casal. Aí levaram o Zezinho. O homem disse que mamãe tinha autorizado. A mulher pegou meu irmão nos braços. Era desajeitada e deixou a cabeça dele tombar. Arrumei o menino e eles se foram. A mulher estava com pressa e não me deixou beijar meu menino. É essa a história. Eu sei onde o Zezinho mora e até fui lá. Faz tempo isso. A mulher disse que eu estava enganada e que ali só moravam ela, o marido e o filho deles. Daí, não tive mais notícias.
- Deixe comigo, Maria do Rosário. Diga-me onde é a casa. Você vai ver o seu menino. Prometo!
Conhecido e estimado, Orlando conseguiu o reencontro. Zezinho estava um homem. Com sequelas da desnutrição, evidentemente, não falava, andava como uma bailarina e apresentava sintomas de surdez quase que absoluta. Embora sem grandes demonstrações, Maria do Rosário pareceu aliviada. Seu irmão estava vivo e mantinha a cabeça firme. Bastou sabê-lo assim. De saída, aproximou-se e, tal como tratava o boneco, fez carinhos na sua cabeça. O casal que o adotou, Orlando ficou sabendo, havia perdido um filho e, diante do trauma e da orientação religiosa, imaginaram ser aquele menino a reencarnação do filho perdido. Zezinho foi alimentado como se alimenta passarinhos: colheradas de pastas eram despejadas diretamente na entrada do tubo digestivo. O irmão de Maria do Rosário estava forte, corado e ovado. A parte mais tocante do dia foi a impressão que todos tiveram: Zezinho, embora um zumbi ambulante, reconheceu a irmã. Aproximou-se dela e, entre gritos e pulos, beijou sua face. Estavam todos diante de um fato estranho e intrigante. Emocionante, afinal.
Orlando, temendo pelo emocional de sua amiga, foi visitá-la. Para sua surpresa, ela estava ouvindo músicas e preparando sua comida. Pediu para auferir sua pressão arterial e, qual não foi seu espanto ao ver a cena: deitado ao lado das irmãs, na outra cama, estava Zezinho. Com a cabeça reposta no seu devido lugar. Guardada na cômoda, por anos, para que não tombasse, evidentemente. Aí, então, teve o atrevimento de perguntar sobre a receita dos biscoitos asas de anjo.
- Orlando, meu doutor, você quer saber demais. Não passo a receita, nem para o amigo, nem para ninguém. É a chave do meu ganha-pão.
Na conclusão da R-3, etapa equivalente ao mestrado, Orlando Moreno, orador da turma e agora psiquiatra, fez uma homenagem especial àquela que, decididamente, foi responsável por sua escolha na especialidade profissional. Na primeira fila, entre os parentes e amigos, estava Maria do Rosário, a sua Mudinha, agora absolutamente falante. Ela, de bem com o mundo; ele, feliz da vida!
Leila Jalul é cronista acreana.
3 comentários:
Um conto bastante emocionante e este Orlando deve ter virado um belissimo psiquiatra com a doçura, ternura, compreensão e persistência que falta em tantos onde por vezes nem olham para o doente que têm à frente!
Obrigado pela partilha e uma vez mais parabéns a Leila Jalul com esta "lição de vida".
Adorei!
Beijocas do lado de cá do oceano
Mais um texto delicioso da Leila.
As suas histórias, que cheiram sempre à vida de gente comum (um pouco na lnha da Eliane Brun), têm o condão de prender o leitor que espera, até à última linha, para conhecer a personagem principal em toda a sua dimensão.
E eu tenho uma predilecção especial pela literatura brasileira, que me começou a cativar desde Jorge Amado, porque a acho particularmente saborosa, quente, sensual.
Esta Mudinha, não sei se existiu ou foi fruto da imaginação da Leila. Mas é uma pessoa, como tantas outras, que a maioria da gente não valoriza, mas que têm um passado, uma experiência de vida, que, uma vez desvendada, nos surpreende e nos encanta.
Parabéns, Leila, por mais este excelente momento de literatura.
A ODELE SEMPRE ME PRESENTEIA COM BELOS GESTOS. SEI QUE ESTOU AINDA MUITO LONGE DE SER UMA ESCRITORA, MAS, COM ESTÚMULOS A DEUS PERMITIR, EU CHEGO LÁ.
OBRIGADA, FATYLY E PECISCAS.
OBRIGADÍSSIMA, AMIGA ODELE.
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