sábado, janeiro 03, 2009

MENINO BONITO (crônica de Leila Jalul)

"Assim me foi contado:
Menino bonito, nascido no meio dos tempos de Biafra. Não houve queima de fogos no seu nascimento, nem se comemorou os seus 45 anos de existência. Nasceu na fome, mas era gorducho, educadinho, bem comportado. Até que cresceu.Quando pequeno, pesava que nem chumbo. Sua pobre irmã criou calombo nas costas por ter que carregá-lo, fazê-lo dormir, dar mamadeiras de 150 ml de água adicionados a 50ml de leite. Mas se salvou das tempestades do destino. Criou barba, músculos e foi enlevado pela burrice crônica. Impossível ser diferente. Era o seu tempo de escolher. E escolheu.
A maldade o selecionou por estes atributos: bonito, forte e burro. Ingredientes necessários para obedecer. E assim se foi para a Base Aérea de Belém, para o treinamento da tropa especial que, entre outras tarefas, fazia segurança à Presidência, então ocupada pelo nada saudoso Ernesto Geisel (arg!). As práticas eram humilhantes e ao mesmo tempo estimulantes para um menino dos tempos de Biafra.
As mangueiras de Belém sabem que sua irmã não mente e lhe servirão de testemunhas. Os ordenamentos da sargentalha diziam: atire em sua própria sombra.Menino-irmão bonito, educado e amoroso. Agora perdido, atirava nele mesmo, ou seja, em sua sombra. As madrugadas de Belém sabem explicar. Ora, se era possível matar a si próprio, por que não a outro? E a outro matou.
Menino gordo, burro e adestrado, saiu do tempo e dos templos da redentora outro menino: mais obeso, mais burro e mais alienado. Ainda tinha resquícios de ternura. Poucos, mais tinha. Sofria de pesadelos e manias de perseguições. Ainda pedia a benção.
– Bênção, mana?
– Deus lhe abençoe.
Um abençoar mal humorado, já que aquele não era o seu menino. Era o menino dos amaldiçoados.Não era o fofucho, alimentado com papa de polvilho doce, elástica e grudenta, enrolada no dedo, sem colher, sem nada, com muita graça levada diretamente em sua boca. Sempre lhe mordia e ria. Ria sem parar. Safado!Menino bonito, escute um desabafo:
"Coitado! Deus o puniu assim, na minha frente. Era o destino. Quando chegar no céu, vou lhe segurar novamente, mesmo que ainda seja forte como um touro. Mesmo que as minhas costas fiquem encalombadas. Vou lhe balançar na rede. Contar histórias da Dona Baratinha, dos Três Porquinhos, as fábulas de Esopo e do La Fontaine, as peraltices das fadas e as catrepagens das feiticeiras, as belezuras de João e Maria, e aumentarei o tamanho do Pé de Feijão. Por ele subiremos, certo?
A do Lobo Mau, essa eu não conto, tá bom? Vou estar disposta a encenar todinhas, usando lençóis para vestir os fantasminhas, engrossar ou afinar a voz nos arremedos, desenhar máscaras, entoar modinhas, enfim, montar o teatrinho de brinquedo, dizendo verdades de meu amor. Meu menino, você nunca foi feio. Foi tudo um pesadelo.
Deus lhe abençoe, viu?
Aproveite que estou de bom humor".
Putz!
Leila Jalul, procuradora aposentada da Universidade Federal do Acre. Autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007)
leilajalul@gmail.com

14 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Depois de uns dias de ausência, (desta vez foi o pc que foi para o hospital) estou de regresso.
Agradeço-lhe e retribuo os votos de bom 2009.
Um abraço e bom fim de semana

Impressionante o texto.
Um abraço para as duas.

Fatyly disse...

Fique arrepiada com esta crônica. Como se moldam seres humanos, meu deus!!!

Recuei no tempo, abri a minha gaveta cerebral de 66/67, tinha eu apenas 10 anitos e lembro-me de um espectáculo que assisti: o evacuamento de milhares de crianças e mulheres retiradas da guerra no Biafra em que mataram 8 a 10 mil seres humanos, fora os estropiados que por lá morreram, tudo por serem de uma étnia diferente dentro da própria Nigéria. Hoje o Biafra é um estado independente julgo eu.
O meu pai era piloto de aviação e em conjunto com vários, num regime de voluntariado e solidariedade pilotaram aviões (sem quaisquer cadeiras), aterravam às escuras onde podiam e ouvia os relatos do meu pai: que as mães atiravam os seus bébés, crianças para o avião e desapareciam na mata.
No regresso tinham apoio e vi crianças esqueléticas que acolhidas recuperaram. Algumas ficaram com familias de Angola e outras levadas para várias partes do mundo.
Oficialmente não sei quantos voos fizeram e quantos conseguiram salvar, talvez milhares... a tanta carnificina.
Hoje esses miúdos terão entre os 40/47 anos.
(Só me lembro disto, não sei que plano foi, ordenado por quem, quem eram os outros que colaboraram e muitos anos depois, por vezes tentava falar com o meu pai mas era assunto que não queria tocar porque marcou-o muito)

Bolas, como me tocou esta crónica!

Beijos Odele e parabéns a Leila

Å®t Øf £övë disse...

Odele,
A sociedade em que vivemos tem essa incrível faculdade de com todo o seu peso moldar as pessoas da forma que mais lhe convém. Infelizmente nem sempre o faz da melhor maneira.
Beijinhos.

Sofá Amarelo disse...

Um texto que devia ser dado a ler aos nossos governantes... ah, mas eles estão muito ocupados, coitados, contando suas estratégias de poder e de injustiças... até quando?

muitos beijinhos, Odele!!!

Filoxera disse...

Lindo.
Um ano de 2009 cheio de bons momentos, é o que lhe desejo e à família.
Um abraço forte.

peciscas disse...

Mais uma crónica da Leila excepcionalmente bem escrita e com um conteúdo humano impressionante.
De facto, quando vemos uma criança, dando os seus primeiros passos, nunca sabemos em que tipo de homem ou mulher se vai tornar.
Um sábio ou um idiota.
Um santo ou um criminoso.
Um ser solidário ou um insensível.
Há quem diga que tudo resulta do acaso ou do destino. Da genética ou do ambiente cultural. Da sociedade ou da família.
Acho que misturando tudo isto, se explicam os comportamentos.
Mas, quem sabe?

Nuno de Sousa disse...

Sem palavras amiga Odele, mas em que sociedade vivemos nós?
Mto bem escrito como tão bem sabes.
Amiga queria deixar aqui uma palavra de incentivo e que este seja o vosso ano o ano da Justiça de Flavia... faço votos para que tenhas um bom ano junto da tua linda filhota e que tudo vos corra pelo melhor.
Deixo aqui a minha bjoca de carinho em ti e uma doce bloca na minha Flavia.
Tudo de bom para esse lado amiga,
Nuno

Odele Souza disse...

Nuno,

Obrigada pelo comentário amigo mas o texto não é meu e sim da talentosa cronista Leila Jalul, minha amiga.

Um abraço e bom 2009 pra você.

Isabel Filipe disse...

simplesmente uma maravilha esta crónica da Leila ...

de arrepiar ...

achas que ela me autorizaria usá-la/ilustra-la?

beijinhos

Jalul disse...

Claro que sim, Isabel.
Esta crônica foi, sem sombra de dúvidas, a mais difícil.
Meu irmão Callil, bonito por natureza, viveu num tempo errado.
Pense numa pessoa desprovida de esclarecimentos e ideologias. Pensou?
Assimn era meu menino.
Certo dia, depois de uma ida ao Oiapoque, liga-me e pergunta: mana, o que é um guerrilheiro?}
Respondi de pronto: mano, é uma pessoa que acredita no bem.
Do outro lado da linha ele me diz: mana, o cabra viajou mais de 13, 14horas com os lábios sangrando. Pedia água. Pedia, não, suplicava.
Mana, eu quis dar água para ele e fui repreendido e preso junto com o guerrilheiro. Mana, eu agi certo?
Agiu, meu filho. Mas não agiu. O outro lado é assim. A morte é intrínseca aos sentidos de quem gosta da morte. A eliminação biológica é prática comum. Para uns, a morte é destino e punição. Para outros, felizmente, a vida é dádiva. Se você sofreu, pense nos seus valores. Repense.
Não posso dizer mais nada. Eu choro sempre que lembro.
Um grande abraço, Isabel.
Um grande abraço, Peciscas.
Um grande abraço, Fatly. Adorei o bastão do imperador a que chamas de rosa de "minha" Angola. Teu texto é sublime, querida.

Jalul disse...

Um agradecimento especial aos teus leitores, Odele. Eles gostam dos teus amigos. Isso me faz bem. Significa que tens uma aura douradíssima!

Maria Clarinda disse...

Excelente esta tua crónica!!!!
Palavras não tenho...obrigada por ela , Amiga!

Odele Souza disse...

Maria Clarinda,

Obrigada pelo comentário, mas a crônica não é minha e sim como aqui mencionado - de minha amiga e cronista acreana, LEILA JALUL.

Um abraço.

ALARY REYS disse...

Oi Leila,
Ao procurar sobre a familia Jalul, deparo com essa cronica sua q nem sabia existir.
Msm antes de ler os comentarios sabia de quem se tratava.
Ainda estou engasgada.Ainda mais agora estando taum perto da data de falecimento dele.
Paz no seu coração.
Bjus