sexta-feira, outubro 10, 2008

COISAS QUE A GENTE APRENDE...

Porque estou publicando neste blog mais uma crônica de Leila Jalul:
Primeiro é porque gosto de sua forma de escrever.
Porque Leila é uma pessoa boa, amiga, solidária, humana.
Porque Leila já me ouviu - quietinha e sem me interromper - chorar ao telefone em pleno domingo.
Porque já me fez sentir o seu abraço inúmeras vezes, mesmo ela morando na Bahia e eu em São Paulo.

E .....porque gosto muito dela.

Com vocês, uma das muitas crônica de minha amiga Leila Jalul.


"À PUTANESCA

Carmélia e Ava Gardner não se conheceram, nem por meio da telona. A beleza e a semelhança entre as duas, no entanto, faria qualquer cristão imaginar que estava vendo coisas. Nem sei qual foi o lugar onde Ava nasceu.

De Carmélia, sei que nasceu no Acre, viveu no Acre e morreu no Acre. Isso é o bastante. Se fez e se criou na curva do tempo. Num lugar onde o remoto ainda queima e o futuro era e é desprovido de porvir. Conheci Carmélia quando comprei uma casa sem número numa rua com nome de um general qualquer, sem sobrenome. Os vizinhos, um tanto de gente também sem sobrenome. Lugar perfeito para esconder minha identidade sem desejo de aparecer. Coisa boa.

Como alternativa de me enfiar no meio das vizinhas lavadeiras, nada mais restava senão aproveitar os olhos d'água e lavar meus trapos, ali, juntinho, e, numa conversa de comadres, portar-me como uma delas. Tempos bons.

Carmélia era fera. Enquanto eu lavava uma bacia, ela já vinha com o angu. Nada de Confort, nada de cheiros, de clareadores. Tudo no muque. Uma tábua na frente, dois nacos de sabão Zebu, e lá estava tudo lavadinho, enxaguado com a erva catinga de mulata, pronto para secar e passar, fazer a trouxa, embrulhar com jeito numa toalha felpuda, prender com dois alfinetes de segurança e entregar para a patroa. Cacete de agilidade!

Aí, no meio dessa algazarra, resolvi fazer a horta comunitária. Precisava fazer com que aquelas meninas aprendessem o valor da berinjela, da rúcula, do agrião de terra molhada, do espinafre, da azedinha, do manjão gomes. Precisava dizer da riqueza dos talos, das vitaminas do sopão de ossos, do caldo engrossado com aveia Quaker. Coisas que a gente aprende com quem entende e ensina para quem ama.

Carmélia era atenta. Atenta até que as disfunções da menopausa a tornassem quase uma demente. Na falta de condições para a reposição de hormônios, seus filhos preferiram interná-la no antigo hospital dos doidos. Ali era o lugar certo para quem enfiava a cabeça na geladeira e tomava banho de água gelada em plena noite de junho, inclusive nas em plenilúnio.
Depois dos achaques, Carmélia, todos os dias, antes das seis da matina, me procurava e dizia:

– Posso entrar?
– Claro!
– Posso plantar?
– Pode.
– Aqui, nesse canteiro?
– Sim, Carmélia, pode plantar.

Em silêncio, Carmélia plantava pés de macarrão espaguete, enquanto eu regava os canteiros de manjericão, hortelãs e os das alfavacas que teimavam ser maiores que os nanicos da região.

No dia em que Carmélia Gardner morreu, servi (por acaso?), no almoço, um espaguete à putanesca. Coisa fina, aprendida com os italianos, preparado num panelão que me foi dado pelas minhas comadres lavadeiras da Rua General Severiano. Coisas que a gente aprende com quem entende e convida a quem ama."
....................................

Leila Jalul, procuradora aposentada da Universidade Federal do Acre. Autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007)
leilajalul@gmail.com

12 comentários:

Anônimo disse...

Oi Odele
Estava passado e aproveitei para te deixar um beijo, e agradecer esta linda cronica. Quantas Carmélia neste mundão

peciscas disse...

Mais um texto literalmente saboroso da Leila.
Que nos dá o retrato de uma certa ruralidade ingénua e pura que, afinal, não está tão distante de nós portugueses como isso...
Mas, para além das palavras cheias de tempero e encanto, o sabor está também nessa imagem do "esparguete à putanesca" que, a começar pelo nome colorido e insólito, deve ser de encher o palato de sensações gostosas. Apetece mesmo não só provar como comer gulosamente...
E, como a Lelila diz "Coisas que a gente aprende com quem entende e convida a quem ama" entro, sento-me e faço-me convidado.

Elvira Carvalho disse...

Passei. Deixo-vos um abraço e votos de um bom fim de semana.

Fatyly disse...

Uma delícia e além de ter sentido esse convívio de lavadeiras no batente, bateu fundo porque de facto" é uma mais valia o que a gente aprende com quem entende e assim poder convidar quem ama".

Leila bota aí no prato uma dose de "espaguete à putanesca" e esquenta nas beira do fogão de sentimentos/recordações que ficarão para sempre.

Odele
não há melhor prato do mundo o que provas e saboreias nestas tuas palavras porque na amizade e no sabermos escutar também somos surpreendidos pela troca sem qualquer cobrança :

"Porque Leila já me ouviu - quietinha e sem me interromper - chorar ao telefone em pleno domingo.
Porque já me fez sentir o seu abraço inúmeras vezes, mesmo ela morando na Bahia e eu em São Paulo."

Ulálá como o "putanesca"(ainda me engano e saí asneirada:):):) ) está super gostosão

Beijocas e um bom fim de semana

Jalul disse...

Minha querida Odele, és dessas pessoas que mais serve do que é servida. Prestas um enorme serviço aos que te conhecem, apenas com o exemplo.
Tua fortaleza é ímpar. Não é demonstração de fraqueza quando choras diante de toda a circunstância em que vives no todo dia de 10 longos anos.
Obrigada, querida. Obrigada pela publicação da crônica, pela ilustração que arregala os olhos até dos não famintos e pela tua amizade gostosa de viver.
Obrigadíssima aos amigos Peciscas, Fatyly e Ná pelo carinho. Poderemos até deixar de saborear espaguetes à puttanesca. Deixar de dedicar-te nosso carinho, nunca!
Bom final de semana para todos.

Nuno de Sousa disse...

Belíssimo texto minha boa amiga, mas essa esparguete deve ser deliciosa não é :-)
Bjs grandes de Portugal em ti e mais umas enormes na minha doce Flavia,
Nuno

vieira calado disse...

Ao ver o prato de massas "com todos"
deu-me fome!
Está apetitoso.
cumprimentos

Jalul disse...

UMA CORREÇÃO AO MEU COMENTÁRIO

ONDE SE LÊ: ÉS DESSAS PESSOAS QUE MAIS SERVE DO QUE É SERVIDA, LEIA-SE: ÉS DO TIPO DE PESSOAS QUE MAIS SERVEM DO QUE SÃO SERVIDAS.

FICA MELHOR, NÃO É?

C Valente disse...

Boa semana com saudações amigas

Maria Clarinda disse...

Adorei o post!!!!Um beijo daquela ternura infinita para ti e Flávia.

Um Poema disse...

.....

«Esparguete à putanesca»...
Este esparguete creio que nunca provei...

Um abraço

Visite www.arteautismo.com disse...

Odele minha querida.
Gostei muita da escrita da Leila, obrigada por nos brindar com este texto lindo.
Boa semana para ti e Flávinha.
Ray