sexta-feira, junho 13, 2008

COMO É BOM LER UMA BOA CRÔNICA!


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Importante e Urgente! - Peço aos leitores deste blog, principalmente meus amigos de Portugal, que entrem na roda a favor de Paula e seu filho João. Uma simples rampa no lugar de escadas, é só que eles pedem. Para saber mais, clique no blog da Fatyly.
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Além de escrever meus próprios textos aqui neste meu blog, e de apoiar outros que abordam direitos humanos, gosto de prestigiar meus amigos, gente boa e solidária que apoia a minha luta pela causa de minha filha Flavia e divulgam o blog FLAVIA, VIVENDO EM COMA, em links e textos.

É o caso de Leila Jalul - autora da crônica deste post. Além de ser procuradora aposentada da Unversidade Federal do Acre, Leila Jalul é uma cronista de mão cheia. Sou fã do que ela escreve. Leila não tem blog, mas suas crônicas podem ser lidas por exemplo nos blogs de

Altino Machado e Lima Coelho.
Obs: Talvez vocês desconheçam o significado de alguns dos termos usados por Leila em sua crônica. Mesmo os brasileiros, dependendo da região onde nasceram, por vezes desconhecem muitos termos usados de forma regional. São os chamados regionalismos, usados em uma região do país, mas desconhecidos de outras. Eu, sou Cearense, nordestina como Leila, e conheço - a maioria - dos termos usados por ela em seus textos. Para facilitar o entendimento de algumas palavras mais regionais, Leila fez um Glossário. Se precisarem, consultem.
Eu particularmente, gosto muito de conhecer palavras novas e me encanto com as diferenças existentes entre as culturas, diferenças estas presentes até no mesmo país, de região para região. Isto é algo que nos enriquece.

CHIQUINHA CORALINA MOREIRA.
Leila Jalul
Do livro SUINDARA - Página 36.

(para Glória Perez e Saramar Mendes)

Minha clientela, da outra esfera, não é fácil. Deixei-a de lado uns dias e já estão chegando as cobranças. Já apareceu aqui um sarará, vulgo Colorau.

- Falou do Camaleão, não é? Esqueceu de mim? - disse muito indignado.

- Acho ousadia você vir me tirar do sagrado direito de dormir. Não é assim, querido. O cavalo aqui tem outras obrigações, outros afazeres. Tenha paciência!

Fui meio indelicada com ele, eu sei, mas é outro que vou cozinhar em banho-maria.

Ontem, sem ver nem pra quê, abri uma cristaleira mixuruca para achar um copo - os de uso, de cristal pé duro, estavam todos na pia - e me deparo com uma xícara, sobrevivente única da espécie. Está velha, de faiança amarelada e está toda trincada em razão do tempo. Assim como eu. Não quebra, nem tem conserto. Tá virando papelim.

Foi esse o mote para lembrar da Dona Chiquinha Moreira, a benzedeira. Nunca esteve de todo esquecida. Cora Coralina e ela tinham semelhanças físicas e espirituais incríveis. Suas vozes pausadas e pastosas tinham sons de bondade, próprios das criaturas que nem só o tempo marcou.

Lá em Goiás Velho, na casinha da bica, tudo ficou mais claro. Tudo ficou mais acentuado. Cora e Chiquinha foram irmãs de tempo e ligadas pela ambição da simplicidade.

Cora de versos puros, em feitio de oração; Chiquinha de orações puras em feitio de poesia. Nos seus quintais as frutas do sobremesar. Em Goiás Velho, jaboticabeiras e pitangueiras, ali pertinho, era só descer a escada e apanhar. O da Chiquinha, era sortido de biribás, fruta do conde e gravioleiras. Docinhas, polpudas, daquelas que só têm graça comer se deixar a criatura se lambuzar.

Cora se projetou, encantou Drumond, conheceu outras terras e virou estrela, na melhor acepção da palavra. Minha Chiquinha, tinha cercas mais fechadas. Viveu sempre dedicada aos anjos e aos não tanto, minados pelos quebrantos, espinhelas caídas, fogos selvagens, landras, cobreiros e carnes trilhadas. Sem contar os mordidos de cobra e os pestilentos.

Galhos de vassourinha, folhas de pimenteira (se a doença fosse rebelde, usava as de malagueta), palmas de vim-de-cá, lavapés de crajirú, banhos de melão-caetano. Tudo do quintal, buscadas com cautela e oração para espantar o mal; fazer as jararacas morderem o próprio rabo e evitar o bote. Não importava o dia claro ou escurecido. Doente chegando na hora certa, lá se ia apanhar o verde apropriado, em voz alta rezando: "São Bento, água benta, Jesus Cristo no altar, o bicho que aqui tiver, afaste, eu quero passar".

De mim, reles assistente, às vezes necessitada, ela esperava o pensamento positivo, até o fechamento da cura. Me alegrava ver o menino que chegou de olho baixo, pescoço pendido, sair da reza esboçando um sorriso amarelinho, menos escangotado, deixando nas mãos enrugadas o ramo de vassourinha, murcho e quente, quase cozido. Quanto mais quente e murcho, mais valia teve a oração.

Rezas em adultos não me atraiam, por causa das pústulas, cheiros, caretas e gemidos altos. Era preciso esquentar compressas, procurar retalhos e linhas para costurar as carnes trilhadas. Pensamento positivo, tudo bem. Olhar, eram outros quinhentos. Ou virava de costas ou fechava os olhos e repetia mentalmente: "quê que eu curo? Cobreiro. Quê que eu corto? Landra". A oração da carne trilhada era bonitinha e tinha um ritual. Um pano era atado, e, ao ser costurado, ela dizia: "osso torcido, carne trilhada, agora eu coso, em nome de Deus e com a proteção de São Frutuoso".

Tinha gente que ia embora e não dizia nem um muito obrigada, que é de graça. Dinheiro, isso nunca! Rezadeira que cobra, a reza não faz efeito.

E a xícara, onde entra a xícara? Bem, é que na pobreza francisquinha, casa coberta de cavaco, sem cama, copos de latas de leite condensado, havia, só para destoar, um completo dessa louça originária da dinastia Ming.

Cora nos legou a riqueza de seus poemas; Chiquinha, um rastro de luz. Juntas, a beleza do ser simples e a importância de um lenitivo.
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Peciscas e Xistosa e demais leitores do Oficina:
GLOSSÁRIO:
Eu e Odele conversamos sobre a feitura de um glossário. Pensei que Odele não conhecia muitas palavras do meu livrinho. Qaul nada! Odele vive em São Paulo mas nasceu no Ceará, nordeste brasileiro.Vamos lá, no tocante a este texto, as palavras que merecem explicação:
SARARÁ - pessoa de cabelos vermelhos. Ruivo.
COLORAU - tempero feito de urucum, muito semelhante à Páprica doce.
BIRIBÁ - Fruta polpuda semelhante à fruta do conde. Ata da amazônia.
ROLLINIA MUCOSA.GRAVIOLA - fruta polpuda de exagerado tamanho, originária das Antilhas e bastante consumida na amazônia.
ANNONA MURICATA. Propaga-se que combate diversos tipos de câncer. Diz-se que o chá de suas folhas emagrece, elimina o ácido úrico, e etc. Quase milagrosa, a tal graviola.
FOGO SELVAGEM - pênfigo. É caracterizado pelo aparecimento de bolhas no tórax, rosto e couro cabeludo. Acomete pessoas de zonas rurais que moram próximo a rios. É uma doença bem própria da pobreza. O doente vira uma chaga viva e não resiste a contato com roupas. Muitas vezes dormem sobre folhas de bananeiras. No Brasil, salvo engano, há um único hospital que cuida dessa doença.
LANDRA - inflamação nos gânglios, adenomegalia.
COBREIRO - Herpes Zoster.
CARNE TRILHADA - contusão que causa estiramento dos tecidos.
A proxima crônica que porventura Odele venha a publicar, prometo, já ir com a listinha do significado das palavras estranhas aos amigos portugueses e brasileiros, também.

12 comentários:

Anônimo disse...

Viajei nesta crônica, passeando pelos contrapontos focados pela autora. Bela crônica.
Passando para deixar aqui um abraço para você e a Flávia.

peciscas disse...

Saborosa esta crónica.
Ainda que, para um português distante, se perca o significado de alguns dos termos. Mas o que se poderá perder em significado, ganha-se em musicalidade.
Da Cora, já sabia alguma coisa.
Da Chiquinha fico agora a saber.
Por cá também, há "rezadeiras" ou "mulheres de virtude", como também aqui se diz.
Há até, numa aldeia do nordeste, todos os anos um congresso (realizado por um padre católico) onde se reune gente com dotes especiais, para benzerem, para curararem, para fazerem e desfazerem feitiços.
Mas, ao invés da Ciquinha, a maior parte deles é mesmo para ganhar dinheiro.

xistosa, josé torres disse...

Não vou dizer que percebi a maioria das palavras.
Tem termos que nunca ouvi, nem li, até em frutas que tanto adoro.
Mas "li" o significado da crónica.
A cronista, entre velharias possuía uma "faiança trincada do tempo"
Mas Chiquinha, ainda que tivesse gente que ia embora sem pagar.
Possuia um tesouro, um completo da dinastia Ming.

Obrigada por este momento.

R.Almeida disse...

Olá Odele
Faz tempo que não vinha ao oficina.
Li um pouco deste texto e fui mais abaixo ao post do blue ribon, que já tinha visto mas que adorei ver de novo.
Who you are makes the difference
Bjs
Raul

Jalul disse...

Peciscas e Xistosa e demais leitores do Oficina,

Eu e Odele conversamos sobre a feitura de um glossário. Pensei que Odele não conhecia muitas palavras do meu livrinho. Qaul nada! Odele vive em São Paulo mas sua família era do nordeste brasileiro.
Vamos lá, no tocante a este texto, as palavras que merecem explicação:

SARARÁ - pessoa de cabelos vermelhos. Ruivo.
COLORAU - tempero feito de urucum, muito semelhante à Páprica doce.
BIRIBÁ - Fruta polpuda semelhante à fruta do conde. Ata da amazônia.
ROLLINIA MUCOSA.
GRAVIOLA - fruta polpuda de exagerado tamanho, originária das Antilhas e bastante consumida na amazônia. ANNONA MURICATA.
Propaga-se que combate diversos tipos de câncer. Diz-se que o chá de suas folhas emagrece, elimina o ácido úrico, e etc. Quase milagrosa, a tal graviola.
FOGO SELVAGEM - pênfigo. É caracterizado pelo aparecimento de bolhas no tórax, rosto e couro cabeludo. Acomete pessoas de zonas rurais que moram próximo a rios. É uma doença bem própria da pobreza. O doente vira uma chaga viva e não resiste a contato com roupas. Muitas vezes dormem sobre folhas de bananeiras. No Brasil, salvo engano, há um único hospital que cuida dessa doença.
LANDRA - inflamação nos gânglios, adenomegalia.
COBREIRO - Herpes Zoster.
CARNE TRILHADA - contusão que causa estiramento dos tecidos.

A proxima crônica que porventura Odele venha a publicar, prometo, já irá com a listinha do significado das palavras estranhas aos amigos portugueses e brasileiros, também.

Fatyly disse...

Adorei a ternura desta crónica e subscrevo as palavras dos comentadores.
Já li nuito de Cora mas saber de Chiquinha fazendo a sua arte/crença com magia, amor e sem cobrar nada, foi tão agradável.
ADOREI!!!!

Já agora dir-te-ei o que aprendi em S.Paulo já que recordo algumas palavras, que no contexto do texto se aplicam bem melhor. Já agora acrescento o que elas significariam por cá:

sarará - linguarudo,tagarela-que fala demais
Colorau - tempero feito com pimentão doce
mixuruca - triste, reles
pia - lava-loiças
papelim - ????
benzedeira - curandeira
sobremesar - comer muitas sobremesas
biribás - é um fruto muito semelhante às carambolas de Angola
quebrantos - prostacção, fraqueza
espinhelas caídas - dores fortes de costas
landras - inflamações provocadas pelos nós feitos pelos pelos e também chamam aos borbotos das camisolas de lã
cobreiros- Herpes Zoster a nossa famosa Zona
carnes trilhadas - entorses ou luxação
jararacas - são réptris escamosas, mas na giria é uma pessoa terrível daí a famosa frase "má como as cobras":)
escangotado - torcicolo
pústulas - devassidão, vicios, patifarias (daí ela dizer "rezas em adulto não me atraiam..."

Desculpa a minha ousadia:) mas foi tão bom este "desafio":)

Um beijo amiga

Jalul disse...

Prezadíssima amiga de Odele. Os amigos de Odele são meus amigos. Então, caríssima, veja só.
Estás bem afinada com este nosso descaminho da língua portuguesa. Apenas algumas pequenas correções, ou melhor, adendos:
SARARÁ é pessoa desprovida de melanina que mantem as feições da raça negra. Também é o nome de uma formiga avermelhada. Daí, todos os brancos de cabelos avermelhados, chamamos de sarará.
COLORAU não é feito de pimentões, mas do urucun, uma pequena frutinha avermelhada. Dele se extrai a tinta que ornamenta a pele dos nossos indígenas. As sementes do urucun são pequenas bolinhas avermelhadas que, torradas e misturadas com farinha de mandioca, faz as vezes do tomate e da páprica na feitura dos alimentos.
PAPELIM diz-se do papel sedoso e de fina textura, mais ou menos como os que envolvem cigarros.
Por PÚSTULAS, além do sentido que já conheces, também são as feridas que purgam e são fétidas. As pessoas pústulas, com certeza, têm mau cheiro de personalidade.
Adorei o sentido que já conheces de JARARACA. Dessas que não são répteis, conheço muitas!!! rs
Um grande abraço para ti e para os teus.

Fatyly disse...

Leila
o prazer é todo meu e claro que sim somos amigas.

Em Angola também havia as tais sementinhas vermelhas e também vi amigos meus utilizarem para as suas festas e rituais. Também em Angola eram usadas na culinária, depois de secas e trituradas com farinha de mandioca. Mas cá em Portugal COLORAU é um tempero feito apenas com pimentos secos e moidos.
Também sei que aí chamam SARARÁ aos brancos/ruivos, mas por vezes na giria era aplicada a qualquer um que saisse dos eixos:)

PÚSTULAS sim, sim são feridas e terríveis de serem curadas. Vi algumas a serem curadas com uma pasta feita com cinza de carvão e umas ervas especiais.

Toda esta misturada só se dá, porque nasci em Angola, vivi 3 anos no Brasil e assentei de vez em Portugal:)mas agora recordo tanta coisa com os brasileiros que vieram para cá!
Obrigado pela tua atenção.
Um abraço sincero

Å®t Øf £övë disse...

Odele,
Esta crónica é mesmo muito interessantes. Mostra-nos como duas pessoas em quase tudo semelhantes, e com os mesmos propositos, podem seguir rumos tão diferentes, mas mesmo assim atingirem os mesmos objectivos, dar um conforto à alma do ser humano.
Bjo.

xistosa, josé torres disse...

Eu só posso agradecer o trabalho que dei.
Tenho a Enciclopédia Luso-Brasileira e por isso todos os termos.
No português corrente é que tal não sucede ...
Por isso vou agradecer o trabalho ... mas nunca liguem ao que escrevo!
Eu não sou de confiança!
Até me engano a mim próprio!
Levo a vida "numa boa" e só vou ficar velho quando morrer!!!

Obrigado.

Alice Matos disse...

Querida Odele, também eu me encanto com as diferenças culturais que nos enriquecem a vida...

Desculpa responder só agora, mas o tempo tem sido escasso... O teu nome está devidamente escrito nos meus blogs... Aqui fica meu pedido de desculpas e o meu carinho...

Beijinhos...

peciscas disse...

O Xistosa já agradeceu o glossário e eu também agradeço.
E também à diligente Fatyly que, como sempre, está sempre pronta a dar uma ajuda.
Mas mesmo sem glossário, o prazer de ler estas crónicas permenece intacto.