quarta-feira, maio 26, 2010

E POR FALAR EM LEILA JALUL...

No post anterior, falei do novo livro de Leila Jalul. Aqui tem mais uma amostra do que Leila escreve. Leila tem um jeito único de escrever.Suas crônicas e contos são imperdíveis.

"O MARIDO DA TIA

Coisa ruim, quase sempre, é nomear os textos. Um título apropriado que revele, de cara, a intenção do miolo. Embora reconhecendo isso, não dei importância e toquei o barco. Ainda assim, posso dizer os títulos que pensei. Quem sabe alguém, na tentativa de ajudar, sugira algo melhor, entre ou além do escolhido e dos pensados.

Vamos lá:

O DEVASSO

AQUI SE FAZ, AQUI SE PAGA

O DEUS QUE MUITO DÁ É O MESMO DEUS QUE TUDO TIRA

Qualquer sugestão será aceita. Bem aceita.

Outra dificuldade, dependendo do assunto a ser tratado, é não escancarar de todo a vida dos sujeitos de vidas repletas de desvirtudes, como no presente caso. Penso que as pessoas, más ou boas, se vão e ficam as sementes. Ninguém merece pagar pelos deslizes dos outros. Em resumo: tem que fazer um contorcionismo maluco para não dar bandeiras e rabeadas.

O marido da tia era delegado e devasso. Nasceu de família morena e já se fez diferente. Tinha olhos azuis de seus parentes europeus. De bom, apenas isso. No mais, uma tragédia para Maria Helena, desde que casaram.

Maria Helena, professora de piano, de placa na porta, fazia da profissão um meio de comprar pequenos objetos de uso pessoal que lhe eram negados. Mulher de bons modos, não escondia a decepção pela forma como era comparada com as mulheres de vida fácil.

– Maria, jumenta sem rabo e sem mãe, você tem que ser uma dama na sala e uma puta no quarto!

Não é essa a censura que faço ao marido da tia. Até aí, vale a velha filosofia de boteco. O que incomodava era a forma e o momento de falar essas coisas. Cadê o respeito?

Gerson, um garoto de 14 anos, aluno de piano, contou-me o que presenciou. Enquanto abria a partitura da Valsa Triste, de Sibelius, ainda no início da lição, viu a mestra ser literalmente agarrada pelos cabelos, arrastada pelo chão e levada ao quarto para o uso e atendimento do marido em seus instintos bestiais (esse termo é bem apropriado). Gerson viu lágrimas e vergonhas no rosto da professora, mas não perdeu a classe. Correu, acendeu a velinha para São Judas Tadeu que ela mantinha num pequeno oratório, ao ladinho de Santa Cecília e, voltando para a banqueta, bateu forte no piano até o término da lição. Outros alunos também viram e ouviram detalhes da intimidade grotesca do casal, por parte do marido e as humilhações sofridas, por parte da mulher.

A prima da tia foi primeira-dama de prefeito e, embora tivessem sido grandes amigas na juventude e no conservatório, afastou-se dela como se fosse doença contagiosa. Maria Helena se viu sozinha.

O fato que relato a partir de agora, para Maria Helena, foi a gota d’água. Armou, digeriu e arquivou a ideia que, pacientemente, deixaria florir. Custou. Mas floriu.

Seguinte: o marido da tia, depois de tomar uns conhaques, pega um companheiro da mesma laia e, de madrugada, chega em casa para a realização de um sonho seu: assistir Maria Helena sendo cavalgada por outro. Surpreendida, mas não tanto, relutou. Não teve opção. Ou cedia, ou era espancada na frente de qualquer pessoa, ou ameaçada de ser jogada na sarjeta. Os vizinhos, por mais que soubessem das coisas, jamais ousaram palpitar. Tinham medo do delegado. Relutou, relutou e teve que capitular.

Capitulou. Ninguém da família acreditaria nela, se relatasse sua vida. Naqueles tempos os clãs tradicionais não aceitavam mercadoria usada de volta. Dos fatos execráveis, no entanto, esse foi apenas mais um. Pouco tempo atrás, por sofrer de fortes enxaquecas e ter-se tornado arredia, Maria Helena andou experimentando, a mando do pai e com o assentimento do marido, algumas sessões de eletrochoque. Daí, ser cavalgada por outro homem foi, apenas e tão somente, mais uma porrada da vida, porém, determinante para assumir o uso constante de roupas escuras, como se viúva estivesse. Naquela triste madrugada ela matou todos os resquícios de bons sentimentos que ainda tinha no coração de musicista, discreta e equilibrada.

Direito de mulher, no século passado, era lei de artigo único: é proibido reclamar. Seu marido é seu dono. Registre-se, publique-se e cumpra-se.

A vida passou no ritmo que tinha de passar. Já se aproximando de completar 40 anos de desregramentos e maldades, o marido da tia teve um derrame. Brabo, diria. O bom Deus, na sua santa e infinita misericórdia, fez o favor de lhe permitir o poder da fala e a luz das vistas. No mais, imobilidade das esquerdas e das direitas do corpo errado e da mente suja.

A vida passou na janela e só o "Carolina" não viu. Para Maria Helena, agraciada pelo destino, estava apenas começando. Largou as roupas escuras, entrou nos estampados gritantes, comprou batons e rouges acarminados, baniu a longa trança e optou pela incorporação um curto Chanel. Nasceu. Mandou pai, mãe e irmãos irem tomar no papa–rola e, de posse do salário do condenado, alterou-se inteira. O escarpim sem salto foi substituído por elegantes bicos finos de verniz e saltos 15. O vermelho, uau, era um luxo!

O piano voltou a barulhar sutilmente os Noturnos de Chopin, mas não só com os dele. Entrou no popular. Tocou uns sambas quadrados só pro desgraçado ouvir, andou na bossa–nova tocando João Donato, João Gilberto, Vinícius e outros. Trouxe para o piano seu grande ídolo, Luis Bonfá. Atravessou os sete mares e em todos os lugares, se mostrava uma mulher nova, bonita e carinhosa que faz qualquer homem gemer sem sentir dor. Só faltava uma coisinha para completar o eclético recital: arranjar um cabra bom de cama para, sem qualquer outro tipo de compromisso, fazê-la mulher.

Tirou de letra. Na festa da primavera, baile tradicional, encontrou o que lhe estava reservado. Dali para a felicidade, foi um pulo!

O que sobrou do marido da tia foi deixado num quarto contíguo ao de casal. Não o abandonou na rua da amargura, como alguns aconselharam. Não, isso não! Fazia parte do castigo, enquanto vivesse, sabê-la sendo cavalgada por outro. Deitadinho, no quartinho, era perfeitamente possível ouvir os arfados arfantes da Maria Helena e do Cláudio Braga. Eram momentos de gritos de desabafo e sussurros de amor. Eram explosões de sentimentos e transbordamentos de realização pessoal.

Muitos juízes machistas e incultos e muitas senhoras bisbilhoteiras e pudicas fizeram lá seus julgamentos precipitados. Fiquei de fora, olhando o desabrochar da tia.

Tentando atrapalhar a hora do bem-bom, ainda de alma suja, o ex e para sempre devasso, suplicava por água ou comida. Deus me perdoe se estiver pecando, mas a língua, antigamente libidinosa, falava atrapalhada. Maria Helena fingia nem estar escutando. Cláudio Braga, já conhecedor de sua vida, de seu tormento e de sua dor, resolveu ser agente ativo do castigo (ou vingança, como queiram). Comungava com o pensamento de que, em tempo algum, mulher alguma deveria ser considerada serventia e depósito de insensibilidades dos homens.

– Comida e água, Juvenal, só depois do amor. Aguarde! Se quiser, aguarde! Peraí.

O marido da tia já se foi. Cláudio e Malena (como a trata), formam um casal de bons e velhos enamorados e amigos. Fazem o amor possível.

Na última vez que estive com eles, mal tinham acabado de voltar da Grécia, duma espécie de lua de qualquer coisa. Peles limpas e renovados. Contou-me o Braga que sua Maria Helena viu o filme da Shirley Valentine e, de comum acordo, decidiram conhecer o paraíso da volta por cima de uma mulher que se viu frustrada e insultada por um sujeitinho qualquer.

Hoje, morando em Santos, a grande sala do apartamento de cobertura abriga um Fritz Dobbert num canto. Mais como enfeite e parte das lembranças dos socorros recebidos, estão as imagens do bondoso São Judas Tadeu e de Santa Cecília. No inverno, tempo nublado, praias vazias, Malena toca suas músicas e as de Braga. Afixada na porta não existe nenhuma placa de "Aulas de Piano".

Gerson, o antigo aprendiz é, além de grande músico, bom amigo do casal e meu. Ganhei dele a honraria de uma música.

Independente de qualquer coisa, gostei de escrever sobre Tia Maria Helena e sua merecida felicidade. Fez bem pra alma. Como fez!

Definitivamente, já escolhi o título da crônica:

A PRIMAVERA DE MARIA HELENA."
Leila Jalul.

7 comentários:

Fatyly disse...

Simplesmente fantástico e com um final surpreendente! ADOREI!

Beijocas do lado de cá do oceano

José A. Soares disse...

Muito bom,
ainda bem que vivemos tempos melhores para as mulheres, apesar de existirem ainda muitos "juvenais".
Parabéns pelo post! bjs

Anônimo disse...

Ótimo post. A crônica é muito boa, tem passagens e coisas muito interessantes. Gostei também do título que você escolheu. É muito bom estar aqui. O modo como você alinha as palavras me conquistou. Voltarei mais vezes. Bjssssssssss

peciscas disse...

Que maravilha de texto.
Saboroso até mais não.
Ao lê-lo, veio-me logo à memória o grande mestre Jorge Amado, para mim o escritor que me fez enfeitiçar por essa prosa ornada de palavras que, muitas vezes nem sei o que significam ao certo, mas que compreendo cabalmente, porque me batem na sensibilidade.Ou seja, por essa literatura brasileira de cariz aparentemente mais leve mas que não deixa de ser de alta qualidade.Nessa literatura me revejo.
Este texto da Leila é mesmo assim como os do Jorge Amado. Tem algo de D. Flor e Seus Dois Maridos.
Parabéns à Leila e a ti por nos teres proporcionado a leitura deste naco de excelente literatura.

Jalul disse...

Aos bons amigos que comentam meus textos, ainda àqueles que trazem construtivas críticas, só me resta agradecer.

Odele, esta amiga de todas as horas, tem sido minha incentivadora. Ela bem sabe o que a escrita significa para minha pessoa. Não permito que minhas limitações físicas atrapalhem minhas idéias. Cedendo espaço para publicá-las ajuda, em muito, a minha produção. Através do Oficina de Palavras, vou correndo o mundo e conhecendo os bons amigos de Odele.

Fatyly, José Soares, Marli Borges e Peciscas, muito obrigada!
Quero melhorar sempre.
Odele, um grande abraço.

Sofá Amarelo disse...

Que fantástico, que bom revelar alguém de uma escrita tão natural e saborosa. Obrigado!

Os maiores beijinhos!!!

Blogando Francês disse...

Ola querida.
Estou fazendo uma pausa nas postagens do Interagindo, mas continuarei visitando os amigos.
Bjs e vc e na Flavia